“Neoliberalismo” é um conceito muito evocado para caracterizar as políticas que conduziram o mundo à crise económica e social com que hoje nos debatemos. Mas o que é afinal o neoliberalismo? Celso Cruzeiro, numa obra recentemente publicada (A Nova Esquerda. Raízes Teóricas e Horizonte Político, Campo das Letras), mostra-nos que não se trata de uma mera teoria económica, mas que, sob esta, se oculta toda uma visão do homem, da vida e da história.
Fukuyama defendeu o “fim da história” sob a forma do capitalismo e do liberalismo. Margaret Tatcher afirmava que a sociedade era “uma ficção”, apenas tendo existência real os indivíduos, pelo que, em última análise não haveria interesses sociais, mas apenas interesses individuais e a luta pela sua afirmação. Os neoliberais pregaram a omnipotência do mercado e a redução do Estado a funções mínimas (para Nozick, praticamente deveria limitar-se às funções de protecção dos cidadãos contra a violência e o roubo). As questões económicas não seriam questões políticas, mas técnicas (tal como o exemplificam as teses monetaristas de Milton Friedman). Contudo, embora pretendam fundar-se na aceitação de algo que seria natural e evidente, e afirmem o fim das ideologias, as suas doutrinas têm um fundamento ideológico evidente. Entenda-se aqui por ideologia “um conjunto coerente de ideias, práticas ou representações emergentes e inseridas nos variados planos da vida, reclamando o entendimento da essência do comportamento humano em dada fase da sua história”.
Após a derrocada do “socialismo real” e num contexto de globalização capitalista, o neoliberalismo afirmou-se como “pensamento único”, estendendo a sua influência dos partidos da direita tradicional aos partidos social-democratas. De facto, traduz a visão do mundo de uma classes social, a burguesia, num momento preciso da história.
Cruzeiro Seixas, na obra citada (pág. 120 e seg’s), caracteriza os traços fundamentais dessa ideologia, partindo de uma análise das teses Hayeck e dos seus seguidores. Assim, o neoliberalismo defende:
1 – “Uma concepção do capitalismo como ordem natural e definitiva do mundo”.
2 – “Um ódio mortal a todas as formas de socialismo, incluindo a social-democracia”.
3 – “Uma aversão à ideia de justiça social” (segundo Hayeck, não há nos resultados do funcionamento do mercado, “nada que possa ser justo ou injusto, porque se trata de resultados que não foram desejados nem previstos, e que dependem de uma variedade de circunstâncias que ninguém conhece na sua totalidade”).
4 – “Uma obsessão privatizadora, cuja fúria abrange tudo – transportes, comunicações, energia, ensino, serviços públicos do Estado…”)
5 – Uma “subvalorização da democracia, que o faz preferir um governo não democrático limitado pela lei (mas que lei? feita e promulgada por quem? defendendo que interesses?) a um governo democrático ilimitado (e pois essencialmente sem lei)”.
6 – Uma crítica do empirismo, que se explica “pela sua crença na existência não só de uma parte da realidade oculta, mas na incapacidade do cérebro humano de a conhecer totalmente, e na existência dos princípios ordenadores de uma abordagem espontânea do conhecimento que prevalece sobre todas as outras abordagens”.
Deste complexo de ideias, onde se cruzam teorias económicas, sociais, políticas e filosóficas, emerge “o mercado, que se move através de uma ordem espontânea endógena em que se entrelaçam e harmonizam as várias vontades individuais no encontro entre a oferta e a procura”, como “símbolo de toda a existência e da ordem natural das coisas”. O mercado é, portanto, “a única verdade, cuja essência é um jogo, jogado aleatoriamente entre vencedores e vencidos, sem que os poderes públicos tenham qualquer legitimidade para intervir”.
Dificilmente, encontraremos partidos ou governos que se mostrem defensores das teses de Hayeck em toda a sua cândida pureza. Contudo, muitas das suas ideias inspiraram governos, vozes da oposição e comentadores políticos encartados. Não será difícil aos meus eventuais leitores completarem com nomes e exemplos esta minha afirmação. E também não lhes será difícil constatarem que a situação que actualmente vivemos é o produto da aplicação das teses neoliberais.
António José Cruz Mendes