"O grande argumento dos defensores do financiamento público dos partidos é a defesa da democracia. Na verdade de Trump a Che Guevara, de Putin a Rosa Luxemburgo não há ninguém que não tenha usado a palavra democracia para defender os seus interesses. Usei propositadamente dois impolutos nomes do melhor que o mundo produziu, Rosa e Che, para lembrar que é pura demagogia avançar com um “eu defendo isto porque defendo a democracia”, e achar que assim o seu argumento está terminado, porque a democracia é um tipo de regime político com muitos matizes. Há quem tenha morrido por ela (Rosa e Che), há quem viva a matá-la (Trump e Putin).
O que este financiamento defende é um tipo de democracia, entre muitos outros, no caso a democracia-representativa profissionalizada nos Parlamentos e no aparelho de Estado, sustentada com dinheiros públicos, com origem em pagamento de impostos que deveriam ser (só e em exclusivo) para serviços universais. Foi este tipo de financiamento que criou uma “classe política” desvinculada dos locais de trabalho e da vida comum das pessoas, criou a possibilidade de se ter como profissão “ser político”, financiado com impostos gerais que prestam necessidades vitais, educação, saúde, bem estar velhice, etc.
O choque com as falsas licenciaturas é em grande medida uma rejeição a isto porque se há trabalhos em que não são necessários estudos superiores, é um facto que há um sector que-vive-da-política-e-do-Estado em Portugal cujo percurso é este: das jotas passam a assessores e o seu trabalho mais notável consiste em jogo de cintura partidário treinado ao longo de uma intensa maratona que tem disciplinas como propaganda, comunicação para os media, pensamento-mágico, engolir de sapos e servilismo disfarçado de admiração, alpinismo social, numa palavra. Possível não porque os militantes pagam quotas, mas porque nós pagamos as quotas que os militantes não querem pagar – até porque já se sabe, criou-se há muito a noção de que o partido é para me servir a mim, o grupo está ao meu serviço – a noção se serviço público actual está tão anémica como a democracia. Há poucas coisas tão nocivas para a democracia como um sector político que tem como profissão ser “deputado”. Aliás, o que hoje se dá como adquirido era até há muito poucos anos considerado imoral – alguém ter como profissão o exercício puro e duro da política à sombra do financiamento estatal.
Volto a insistir: defendo a existência de partidos, acho-os fundamentais, defendo a existência de políticos profissionais pagos pelos militantes, mas como representam interesses cada militante deve pagar para representar os interesses em que acredita. E não esperar que eu e todos os portugueses o façamos por ele. A democracia é uma bela palavra, que não se esgota num voto de 4 em 4 anos. Está mal em Portugal e não se cura colocando os 10 milhões de portugueses a pagar as quotas que os militantes do PSD e do BE ou outros não querem pagar – aliás, isso distorce a democracia porque nos coloca a todos à força a apoiar forças políticas nas quais não nos revemos.
Se estão seriamente preocupados com a democracia em Portugal, eu estou, podemos reflectir juntos sobre o tema, por exemplo a gestão profissional democrática: em Portugal não há democracia alguma nos locais de trabalho, num hospital manda um gestor que fica surpreendido porque num “dia fez-se mais operações às hérnias umbilicais do que apendicites agudas” (cito caso verdadeiro) e em muitas escolas os directores estão a criar um clima de ameaça em que agora está um funcionário na porta do pavilhão a anotar se o professor saiu “mais cedo ou mais tarde do que o toque, ambos puníveis, em alguns casos com encerramento provisório do Pavilhão pelo funcionário” (cito também casos reais).
Nenhum partido pode numa democracia receber qualquer dinheiro Estatal porque os partidos são organizações da sociedade civil que disputam lugares na sociedade política, lutam pelo poder do Estado, representando interesses, representando uma parte – e por isso se chamam partidos – não podem ser financiados pelo todo, pelo Estado. Vejamos: o Estado social é financiado pelos impostos, de todos para todos, é um serviço universal, não concebo que o meu dinheiro vá financiar o programa do PSD que defende privatizar estes serviços públicos. Mas também não aceito que os militantes do PSD financiem os programas políticos em que acredito, trata-se de um critério elementar de independência política. Quem não quer pagar quotas não quer de facto ter partido, não quer tomar partido, quer que outros tomem partido por si. E isso é o mais absurdo atropelo do direito fundamental ao voto, à escolha, porque me coloca a mim, compulsivamente, a financiar as escolhas dos outros, subtraindo ao meu salário, por via de impostos, dinheiro que quero usar a financiar as escolhas em que acredito. Porque acredito na democracia. E agora, feitas as contas, quem de nós está habilitado a defender a democracia com honra?
E a morrer por ela".
Raquel Varela