O que têm em comum a reacção à morte de Marielle Franco, os incêndios em Portugal e os abraços do Presidente da República e eu não ter ajudado um filho meu que caiu? O medo.
Quero falar-vos de Marielle, a política de emoções, e a política de afectos do Presidente da República Portuguesa. E contar-vos uma história íntima onde falhei numa situação de tensão. Tudo isto para vos falar do medo. E de como a política não pode ser reduzida ao medo, nem às emoções. Na vida somos convocados a enfrentar e resolver problemas. E não nos podemos deixar esmagar por eles. Isso aprende-se. E também se desaprende.
A semana passada fui alvo de uma crítica moral séria – eu teria desrespeitado o luto da morte de Marielle ao ter questionado, assim que soube da sua morte, a estratégia da esquerda identitária, em Portugal das causas “fracturantes”. O fim e os meios porque oriento a minha vida pessoal e pública são a essência do que sou, acredito na centralidade da ética do trabalho e acho que toda a moral deve estar a isto submetida. Por isso essa acusação é muito séria.
No meio vieram outras inculpações, opiniões minhas foram apresentadas como heresias: eu não acreditava na “auto-emancipação dos negros das favelas”, desprezava o valor da educação popular, rejeitava o “identitarismo”. É isso mesmo. Não acredito que sem partidos políticos com coesão social, que incluam brancos, os negros possam libertar-se da sua condição subordinada; e lamento que a educação erudita e científica seja hoje propriedade de um pequeno grupo de privilegiados, onde me encontro. Como são assuntos muito polémicos, prometo com calma voltar a eles. Porque agora quero falar-vos da emoção na política.
Quando Marielle e o seu motorista foram assassinados, as pessoas, horrorizadas, encheram as redes sociais com repugnância pelo crime, medo, ódio aos assassinos, susto, horror, tristeza. Só demonstra sensibilidade e humanidade. Mas os dirigentes políticos fizeram o mesmo. E isso demonstra que não são bons dirigentes políticos. Têm que ser melhores.
O medo tomou conta das declarações da maioria dos dirigentes políticos nessas horas. Foi com espanto que as fui seguindo aqui no Facebook. E as emoções, que hoje dominam a política mundial, não podem ajudar quem mais precisa: «Estou chocado», escreveu um dirigente. «Estamos tristíssimos», dizia outro. Mas alguém tem dúvidas de que estamos todos chocados? A política é um concurso de emoções?
Há muitos anos que em Portugal dirigentes políticos explicam como é mau ser desempregado, é triste, terrível. Ora quem é desempregado não precisa que um dirigente político lhe explique isso, porque ele sabe isso melhor do que ninguém, vive-o dia a dia – ele precisa de soluções para o desemprego. Se um trabalhador de uma favela vê uma vereadora ser vilmente assassinada não precisa de mais um, em que ele procura soluções, a ficar em pânico. Porque em pânico já estão eles, todos dos dias, nas favelas. Eles vêem assassinatos todos os dias, não de uma vereadora, mas até dos próprios filhos, vizinhos.
Esta ideia de ir atrás das emoções tem, creio, três dimensões.
Uma é falta de autocontrolo emocional dos dirigentes, e isso remete para a educação de hoje e seus valores. Para a ausência de experiência de direcção. Comparem as declarações de Churchill com as do Trump; as de Lenine com as de qualquer dirigente de esquerda hoje. Trump não é só de direita, ele é um “menino”, o último tipo com quem queremos jogar à bola na escola, porque está sempre a cair e a queixar-se, alterna entre a birra, o ódio, vive em estado emocional descontrolado permanente. E é ele que dirige o país mais poderoso do mundo?
Na esquerda há e houve falta de direcção, mas sobretudo, creio, esta é a segunda dimensão, falta de soluções mesmo. “Que horror, estou chocado, assassinos, vamos tomar as ruas contra a polícia militar”. Isto não é política, na minha opinião. Quando no Maio de 68 em França os estudantes tomaram as ruas, os grevistas da Renault estavam a dirigir as fábricas. Por isso os estudantes puderem tomar as ruas sem ser esmagados. Em Portugal há sindicatos que ninguém conhece fora do meio (eu conheço porque com eles trabalho) que nem chegam a fazer greve, basta ameaçar, porque têm organização – não os vêem nas redes sociais nem a tomar as ruas; são estruturas coesas, organizadas e disciplinadas de força dos trabalhadores.
Ser contra a polícia militar é elementar mas não chega. Como resolver o problema de segurança das cidades brasileiras e dos trabalhadores das favelas que têm medo de ir do bairro ao trabalho? E têm medo da polícia. E têm medo dos ladrões. Desmilitarizando a polícia, claro. E o resto? Vai haver trabalhadores armados, sovietes? Não me parece, num futuro imediato. E polícia de proximidade, polícia não armada? Isso é possível no Brasil? Não sei responder. Não sei mesmo. E também não ouvi ninguém no Brasil explicar.
Dizem que a culpa do estado a que o Brasil chegou é da Globo, tese que não compro. Acho que a esquerda tem de fazer uma profunda reflexão sobre porque se afastou da classe trabalhadora de facto, entregando-a nas mãos do desespero ou mesmo da extrema-direita. Faço esta reflexão convosco, porque sou de esquerda, e acho que falhámos, redondamente. Se os trabalhadores votam na extrema-direita eu também fracassei, fracassámos. Os trabalhadores das favelas não estão na esquerda, estão nas igrejas pentecostais, incluindo os da Maré, que votaram massivamente num prefeito protofascista. Marielle foi a mais votada, mas nos bairros médios da zona sul. Isso só diz bem da zona sul e de Marielle. Mas diz mal das organizações de esquerda, que não têm um programa nem organização para estes trabalhadores mais pobres.
Por isso repetiram a frase “Marielle foi a 5.ª mais votada”, omitindo que na zona da Maré e na zona Norte, corrijam se estiver errada, quem ganhou foi um pastor de extrema-direita. A esquerda vive na ilusão de representar uma base que socialmente não organiza. A direita, que odeia Marielle e que sobre ela escreveu as coisas mais caluniosas, é que dirige os trabalhadores das favelas. Ao ponto de, para um sector importante da esquerda, estes serem «favelados» e não «trabalhadores das favelas». E se eu perguntar onde trabalham os trabalhadores das favelas, em que fábricas e empresas, com que contratos e custo de vida, em que áreas geográficas e com que horários, ninguém na esquerda – suspeito – vai saber responder-me.
Irei escrever sobre isso. Mas não hoje. Só o escrevi agora porque quero voltar à irracionalidade da “política de emoções” – ela revela fracasso de actuação real, capacidade de influenciar a realidade, ter inserção social real no mundo do trabalho.
Estamos submersos na «política de emoções». Se repararem nas notícias do mundo inteiro, temos a seguinte sequência: debate entre partidos políticos; guerra na Síria, mortos, atentados terroristas, com imagens assustadoras, acidentes de automóvel; chuvas e secas extremas, medo, horror, barbárie. Seguidos de cinco minutos finais de felicidade e redenção, o futebol. Tudo isto reduz a política à sua dimensão parlamentar e de Estado. Não há política fora do Estado segundo este alinhamento informativo e deformativo. Segue-se a barbárie. E como nenhum destes fenómenos – guerra, acidentes, chuvas – passa por uma explicação racional de causas e soluções, sobra o medo. E do medo resulta exclusivamente o seguinte: imobilismo, paralisia, fuga ou agressividade – é assim que qualquer animal reage a um ataque.
Mas nós não podemos comportar-nos como animais. E aqui vos conto uma história minha, não é uma história pessoal, como faço em jeito de crónicas por vezes, mas intima mesmo. Creio que a gravidade do tema a convoca.
Um dia estava com a Guida, que cuidava dos meus filhos. [Quem conhece Portugal sabe que não temos em média relações escravocratas com quem cuida dos filhos, são relações de trabalho assalariado regulado, mediadas até por grande autonomia, têm as chaves da nossa casa, dão ordens aos nossos filhos.] A Guida, no seu “pelouro”, mandava tanto na educação dos miúdos como nós, fazendo aliás várias coisas contra a minha vontade.
Estava um dia eu e a Guida na conversa e os meus filhos, então com 9 meses, nas camas de grades a brincar e a pular. Eles eram muito altos, a cama dizia que era para 3 anos, e eu comentei com a Guida que achava que um dia destes eles podiam cair dali. Por uma estranha coincidência, naquele segundo ele tomou balanço, atirou-se da cama e aterrou de cabeça no chão. Eu entrei em choque, choque mesmo, o maxilar de baixo num tremor ininterrupto, não conseguia falar ou sequer aproximar-me do Manuel, que estava semidesmaiado. Eu tremia e estava paralisada. A Guida levantou o Manuel, a cabeça dele caiu sobre o corpo, sem força no pescoço, eu colapsei. Nunca toquei no meu filho naqueles minutos. O meu ex-marido, pai deles, veio a correr do escritório, segurou com calma no Manuel, a Guida chamou a emergência médica, e todos fomos para o hospital. Na ambulância os bombeiros tinham que se dividir entre cuidar do Manuel e cuidar da mãe do Manuel, eu mesma. Chegados ao hospital, o Manuel sai da maca, pulando de alegria. A perda de força tinha tido a ver com o embate da massa encefálica na cabeça, explicaram-me. Ele tinha um grande hematoma, mas estava óptimo, dava sonoras gargalhadas e achava o lugar divertido, cheio de gente e luzes e colchões onde pular. A neurologista, alegre, palrava com ele, e ria para mim, para tentar tirar-me do choque, e dizia: “Mãe, ó mãe, olhe para mim, mãe, ele está bem! Olhe como ele pula e ri!”
Quando voltei a mim, passadas várias horas, e me lamentei, o meu ex-marido disse-me com calma, doçura, mas com a voz dura: “Isto não era sobre ti, era sobre ele.”
Eu não só tinha falhado em auxiliar o meu filho como tinha mobilizado recursos para cuidarem de mim. Falhei em toda a linha. Aprendi nesse dia que há momentos na vida em que o que sentimos não é o mais importante.
Quando Portugal estava a arder no fogo de Pedrogão Grande que matou dezenas de pessoas há meses, eu escrevi aqui, quando ainda estavam pessoas a morrer encurraladas sem assistência, o Estado falhou em toda a linha no auxílio às populações. Conhecendo eu o funcionamento do Estado e não estando emocionalmente envolvida sabia que não era só a bomba incendiária do eucalipto que estava em causa, algo de novo tinha acontecido, era evidente que os cortes da troika na função pública – GNR, polícia, INEM, médicos, enfermeiros, protecção civil – tinha queimado em negligencia as pessoas vivas, no mais tenebroso incêndio que o país viveu. Os relatórios oficiais do Governo que saíram esta semana confirmaram totalmente o que eu tinha escrito naquela noite.
Uma parte grande dos apoiantes públicos do Governo apressaram-se a dizer que não era hora de balanços, mas de chorar as vítimas.
Para minha surpresa as redes sociais deram nessa noite um exemplo de racionalidade que o Estado e as instituições não conseguiam passar. O meu texto teve mais de 1 milhão de leituras em poucas horas; ao mesmo tempo técnicos florestais começaram a publicar textos onde questionavam o Governo, foram massivamente partilhados. Nós não tínhamos familiares lá e tínhamos conhecimento em diversas áreas para trazer racionalidade à tragédia. Dizer a verdade era um dever – a comunicação social passava imagens de carros e corpos, e abraços entre governantes e nós – à medida que as horas passaram já estavam florestais, cientistas sociais, médicos nesse grupo – questionava-mos o Estado, era a nossa forma de respeito pelas vítimas. Não estávamos a fazer luto – que é realizado pelos que são próximos das vítimas.
Marcelo Rebelo de Sousa foi a correr ao local dar abraços, disse «tudo funcionou bem». Nada tinha funcionado bem. Ele é o Presidente da Republica que, com sinceridade e afecto, não resolve nada. No dia das mulheres vai passar a ferro numa fábrica e abraça uma operária, no dia seguinte está a cortar mato contra os fogos; no outro a dormir com mendigos na rua. Mais, ele não é um hipócrita. É evidente que gosta das pessoas, é genuinamente popular. É um fenómeno, um case study. É impossível não ser emocionalmente arrastado pelo seu charme irrequieto. Mas as condições de trabalho daquela mulher e do seu marido não mudaram uma vírgula; o país vai arder porque é uma monocultura de eucalipto cujo fogo se propaga por copas e não pelo mato; os mendigos vão dormir na rua, 364 por ano ano – só que sozinhos.
O que se vai passar no Brasil não é um problema do Brasil. Nem dos negros, nem das mulheres. Desconfio que Marielle não foi morta só por ser negra ou mulher, nem quero entrar neste debate estéril, mas foi morta também e sobretudo por organizar – vou sublinhar, organizar, ela era uma dirigente. O Brasil não é um quintal de terceira, é um país gigante com uma das classes trabalhadores mais jovens e numericamente importantes do mundo. O que quer que se passe no Brasil vai ter impacto no mundo inteiro. Uma esquerda isolada, paroquial, está pronta a responder a este desafio?
Sob pena de a esquerda virar uma seita, ou uma federação de seitas, com um código moral inexpugnável, como o de todas as seitas, é hora de parar, acarinhar todos os que pensam e agem em prol da sociedade, abrir os olhos e os ouvidos, escutar o que é diferente sem classificar moralmente o dissenso, impedindo-os assim de falar. Cuidar de ver o que as pessoas fazem e não só nem principalmente o que dizem. Somos o que fazemos e somos o que fazemos para mudar o que somos. Todos dizemos coisas estúpidas e até fazemos, somos imperfeitos. É a nossa dinâmica, a nossa evolução, que conta. As pessoas não são puras, são mediadas por contradições, é neste caldo que temos que pensar um projecto coerente de gestão da sociedade, em alternativa à barbárie. Esse projecto tem que ter racionalidade – pode incluir até pessoas por quem não temos afecto, a quem não damos abraços, mas que seriamente definiram uma estratégia coerente de bem estar laboral e social e se comprometeram com ela.
A esquerda tem de apresentar soluções para a vida das pessoas, não abraços e likes, e não pode ficar refém das agendas particulares dos grupos das causas fracturantes. Sobretudo se estes estão-se marimbando para as causas do bem comum e em vez de juntar forças e aliados, como faz quem quer de facto conquistar alguma coisa, entraram (alguns) numa deriva de disparar contra aqueles que de facto são aliados das causas que eles pretendem representar.